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11
Set19

Reserva

por Patrícia Fragoso

Eis que vou falar de um assunto bastante presente na vida da gente, mas não uma gente qualquer. Aqueles ditos comuns de “pobres”, sem muito dinheiro, pessoal da ralé, da plebe, mas com nobres corações e, acima de tudo, muito humildes.

Quase todos têm um carrito para as deslocações na cidade, (temos, vá, que eu também me incluo nesta dita classe social), quase todos temos um carrito, uma charronca maneirinha e entre nós não há cá daqueles bitaites “ahhh e tal a tua é melhor do que a minha”, porque para todos os efeitos os carros da gente com mais capital são só ali a partir do ano de 2010. A não ser que seja de um tipo colecionador que tem uma garagem cheia de carismáticos clássicos, todos equipados de origem e cuja sua origem pessoal seja ali das zonas da Quinta da Marinha, da Beloura, e que na sua mansão haja lugar para uns 10 carros (no mínimo) e há sempre, mas sempre, um carro recente – para não estragar os outros, que são só de fim de semana, claro!

Mas vamos ao que interessa, citar um dia normal das gentes menos abonadas e o seu veículo pessoal de transporte, dando o meu exemplo prático.

Tenho um Volkswagen Lupo 1.0 a gasolina, de 1999, (também ele quase um clássico) só tenho de ter cuidado quando chove, pois vá lá saber-se porquê, embacia e não vejo um boi à frente. Tem os seus defeitos, faz um barulhinho na porta do pendura que quase parece que cai e toda a gente que lá entra segura a manivela que caiu da janela porque o vidro não subia sozinho. Basicamente, não posso eu abrir a janela do meu lado direito sem ter companhia com um bocadinho de força para a ajudar a fechar. Mas... nem tudo é mau, no meu antigo Lupo (sim, não me questionem, porém, espatifei um e fui buscar outro igual) a janela estava presa com ripas de madeira porque o vidro caiu num dia em que fechei a porta, como de costume.

Coisas de carros modernos, tudo automático, do melhor!

Pois bem, sabendo que é um carro extremamente poupadinho (8.1 lts/100km, de acordo com a ficha técnica e consumo na cidade) achei que se identificava comigo, jeitoso, pequeno, fácil de estacionar e decidi – sem recorrer a créditos automóveis – investir uma fortuna neste citadino. Cerca de 1250 euros.

Dou as minhas voltinhas, já dei voltas maiores, é um facto e para quem duvidava, o pequenote aguentou-se bem!

Saio no sábado para passar fora o fim de semana, no Algarve dos pobres – Costa de Caparica. 10 euros de gota. Acabo de colocar combustível e sinto-me a maior! Pé no acelerador, a fundo na A5, na faixa do meio, pimba, pimba, pimba, passa todos às 4 mil rotações e lá vai ele. Chego à Costa, arranjo um lugar bacano e quietinho até segunda-feira à tarde. Aquilo lá não é grande, faz-se bem a pé. Como estava orgulhosa, 10 euros deram para três dias... parado!

Tive de vir embora, com muita pena minha, tinha a minha pressoterapia marcada para as 17 horas, sim, porque depois de dois dias estafantes de praia tinha de ter um tratamento de beleza, nos Jardins da Parede com toda a certeza!

Meti 50 cavalos a caminho às 16 horas e 35 minutos, pensando eu que o meu Lupo é um avião a jato e que àquela hora trânsito é coisa que não existe. Ali no cruzamento das palmeiras, mesmo à saída da Costa, surge a minha luz favorita – a da reserva. Tranquilo, dá quase para ir ao Porto e vir. Apanho um bocado de trânsito na via rápida, para-arranca durante uma meia hora e eis que passa a hora do tratamento. Ligo para a clínica e referi que ia demorar mais uns quinze minutinhos “17h15 estou aí!”. Horários nunca foram o meu forte e a minha sorte é que a rececionista me diz que o ideal seria aparecer às 17h30. Nem tinha chegado à entrada da ponte e ainda só estava a ¼ da reserva.  Passo as portagens e toca a dar com fé no pé direito, faixa do meio livre, mesmo ao meu jeito e fui pela ponte fora a 80 km à hora sentindo a brisa passando pela minha orelha esquerda. Confesso que ali na subida de Monsanto me deu um apertozinho às 17h18, não pelo atraso, mas sim pelo atraso de vida do meu carro que decidiu subir quase de empurrão e me consumiu mais 2/4 da minha gigante reserva. Bolas, assim já não dá para ir ao Porto, fico-me ali por Coimbra!

Oh Lupito, o que vale é que agora vem aí uma descida e vou de lance durante uns 5 quilómetros. Ponto morto. A agarrar bem o volante para não ir torto e não queimar gasolina à toa! Como é bom estar na autoestrada de Lisboa!

Nem tudo é perfeito, mais um carro parado na via e tudo o que eu queria era chegar a horas ao tratamento. Para meu descontentamento, 17h23 e a gasolina ainda dava para ir e vir outra vez. Chego ali pertinho de Oeiras, olho para as minhas duas beiras e não há ninguém! Caminho livre e bota o ponto morto novamente. Desta vez foi diferente e lá bateu os 120 km à hora. Já a pensar na desculpa pela demora que ia dar quando chegasse ao consultório.

Saída em Carcavelos às 17h30 certas e na localidade não vi abertas, pelo contrário, só veículos parados e a apitar, como se o trânsito assim mais rápido se fosse despachar. Gente da ralé. Porque os chiques não apitam, nem têm problemas de reserva, eles gostam de estar parados para que todos possam admirar a data da matrícula a roçar no ano presente. Que belo cenário e no meu imaginário já só queria estar deitada na marquesa a fazer o meu tratamento de beleza que já lá ia a caminho das 18 horas.

Finalmente, estaciono, aterro no gabinete ouvindo dizer: “Vamos ter de reduzir o tempo hoje, há uma pessoa para as seis e meia!” Penso “tudo bem, a seguir agarro no meu carro e vou dar uma volta, aproveito e vejo o pôr-do-sol”. A única coisa parecida com isso que vi, foi a cor da luz da minha reserva.

Encontro-me com o meu pai que me recomenda que vá à bomba mais perto e ao qual respondo “é certo que o carro até casa aguenta, já o conheço!”

Todo o povo conhece bem a reserva do seu carro, a nossa grande amiga reserva, que decide acender quando mais temos dinheiro na carteira, quando no lugar de 10, por vezes temos 5 míseros euros e nem com o desconto de combustível ela decide apagar.

Lá fui eu, no meu Vermelho Flash até à bomba ao pé de casa, onde possuo um cartão de desconto e pago 9,67 euros. Na distância de casa ao posto de abastecimento deu-me um momento de pura lucidez “mas que estupidez, porque raio vou eu abastecer já se isto ainda não chegou ao tracinho branco?!”

Só entrei porque não havia carros na fila. Puxo da mangueira, carrego com toda a força que tenho, na esperança de sair mais gasolina lá de dentro e até me ficou a doer o polegar. Mas que treta, quase 10 euros por meio minuto na mangueira e quando acaba uma pessoa espreme aquilo até à última, abana até que o mais pequeno pingo saia e quase que arranca a mangueira do posto com vontade de que aquilo encha mais um bocadinho até chegar a casa. Tapa-se o depósito, mete-se a quilometragem a zeros, liga-se o veículo e a puta da reserva está quase a acender. Tranquilo, amanhã vou para a Costa e quando voltar logo se metem mais 10 euros!

 


4 comentários

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imsilva 16.09.2019

Muito bem descrito, fizeste-me suster a respiração, com medo que ficasses a meio do caminho.
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Patrícia Fragoso 16.09.2019

A reserva nunca nos deixa ficar mal!

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